Na celebração final do 10. Encontro da Igreja na Amazônia,
realizada em Santarém (PA), em 06 de julho de 2012, o cardeal dom
Claudio Hummes, presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia, e os bispos
dos regionais da CNBB que abrangem a região divulgaram uma Carta ao Povo de
Deus. O encontro também contou com a participação de dom Leonardo Steiner,
secretário geral da Conferência.
CARTA AO POVO DE DEUS
Irmãs e irmãos
caríssimos em Cristo Jesus,
Povo de Deus na
Amazônia,
“Não tenha medo, cotinue
a falar e não se cale, pois eu estou contigo“ (At 18,9)
“Cristo
aponta para a Amazônia“ lembrava o Papa Paulo VI aos bispos da Amazônia por
ocasião de seu encontro em Santarém, de 24 a 30 de maio de 1972, marco
indelével na história da Igreja desta grande região brasileira, habitada por
povos de culturas e tradições tão diferenciadas do outro Brasil.
Expressamos nossa gratidão ao Deus da vida
porque nestes 40 anos, não obstante nossas fragilidades, nossa Igreja tem
anunciado Jesus Cristo ressuscitado, caminho, verdade e vida e tem marcado
presença junto ao povo sofrido, sendo muitas vezes a voz dos povos indígenas,
ribeirinhos, quilombolas, seringueiros e migrantes, nas periferias e em novos
ambientes do centros urbanos animando as comunidades na reivindicação do
respeito pela sua história e religiosidade. É também a vida destes povos, seu
modo de viver, sua simplicidade, seu protagonismo, sua fé que nos encantam! Não
faltou o testemunho de entrega da própria vida até o derramamento de sangue.
Este testemunho nos anima, nos encoraja e nos fortalece. São também
protagonistas religiosos e religiosas, pastorais, movimentos e serviços que tem
sido uma força viva e atuante na realidade das nossas comunidades.
Constatamos avanços no campo social
e político, com novos organismos de participação, conselhos de políticas
públicas, participação nas campanhas por leis mais justas, aumento da
consciência e engajamento na questão ecológica. No campo econômico, cresce o
consumo e o poder aquisitvo embora nem sempre acompanhado do aumento da
qualidade de vida. A vida na Amazônia continua sofrida.
Há
séculos os povos da Amazônia gemem e choram sob o peso de um modelo de
desenvolvimento que os oprime e exclui do “banquete da vida, para o qual todos os homens e mulheres são igualmente convidados por
Deus“ (SRS
39). A Igreja ouve os gritos, às vezes desesperados, e se identifica com o seu
clamor, conhece o seu sofrimento. Mais ainda, a Igreja declara que “as alegrias
e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e angustias dos discípulos de Cristo“ (cf. GS 1).
As
decisões sobre o desenvolvimento da Amazônia sempre são tomadas a partir de fora
e visam unica e exclusivamente a exploração das riquezas naturais sem levar em
conta as legítimas aspirações dos povos desta região a uma verdadeira justiça
social. Quando Paulo VI declarava que “o desenvolvimento é
o novo nome da paz“ (PP 87), não pensava num “crescimentismo“ meramente
econômico, unilateral e excludente, mas convidava a todos os povos da terra a
empenhar-se por um mundo justo, fraterno e solidário, na perspectiva do Reino
que Jesus veio a anunciar “para que todos tenham vida“ (Jo 10,10).
Como
quarenta anos atrás, a Amazônia continua sendo considerada a “colônia“, mesmo
que abranja mais da metade do território nacional. Para a metrópole – Brasília,
o sudeste e o sul do País – Amazônia é apenas “província“, primeiro província madeireira
e mineradora, depois a última fronteira agrícola no intuito de expandir o
agronegócio até os confins deste delicado e complexo ecossistema, único em todo
o planeta. De uns anos para cá a “província“ recebeu mais um rótulo, sem dúvida
o mais desastroso, pois implicará a sua destruição programada, haja visto o
número de hidrelétricas projetadas para os próximos anos: a Amazônia é declarada
a província “energética“ do País. Sob a alegação de gerar energia limpa se
esconde a verdade de que mais florestas sucumbirão, mais áreas, inclusive
urbanas, serão inundadas, milhares de famílias serão expulsas de suas terras
ancestrais, mais aldeias indígenas diretamente afetadas, mais lagos
artificiais, podres e mortos, produzirão gases letais e se tornarão viveiro
propício para todo tipo de pragas e geradores de doenças endêmicas.
A
história da Amazônia revela que foi sempre uma minoria que lucrava às custas da
pobreza da maioria e da depredação inescrupulosa das riquezas naturais da
região, dádiva divina para os povos que aqui vivem há milênios e os migrantes
que chegaram ao longo dos séculos passados.
Santarém 1972:
Encarnação na Realidade e Evangelização Libertadora
Como
já em 1972, os bispos reunidos em Santarém de 2 a 6 de julho de 2012 não
detectam apenas os mecanismos perniciosos responsáveis pela miséria dos povos e
a devastação das florestas, mas os denunciam como responsáveis de gerar “ricos
cada vez mais ricos às custas e pobres cada vez mais pobres“ (João Paulo II,
Discurso inaugural de Puebla, 28 de janeiro de 1979) e de um meio-ambiente cada
vez mais deteriorado. O “lar“ (em grego “oikos“ – daí a palavra “ecologia“)
que Deus criou para todos nós não pode ser explorado até a exaustão, mas exige
cuidado, zelo, amor, também em vista das futuras gerações. Os cientistas alertam sempre
mais que a devastação da Amazônia terá consequências irreversíveis para o clima
do planeta e se torna assim uma ameaça à vida e sobrevivência de toda a
humanidade.
Em 1972 os
bispos da Amazônia já identificaram graves feridas neste mundo de selvas e
águas que atingiram violentamente os povos originários e tradicionais da
região. Como 40 anos atrás, também hoje os bispos se
entendem como mensageiros dos povos da Amazônia, profetas que vivem numa grande
proximidade com Deus e ao mesmo tempo sintonizados com os acontecimentos
históricos, homens de fé que „vêm da grande tribulação“ (Ap 7,14). Nestes nossos tempos,
as feridas se tornaram chagas abertas que perpassam e sangram a Amazônia de
fora a fora, causando cada dia mais vítimas fatais.
As prioridades da ação pastoral e evangelizadora apontadas em 1972
continuam atualíssimas. Até hoje uma formação adequada à essa região para
ministros ordenados, mas também para leigas e leigos que dirigem as
comunidades, é fundamental. Importa encarnar a Igreja no chão concreto da
Amazônia. Quem exerce um ministério, ordenado ou não, participa do pastoreio de
Jesus e está a serviço de seus irmãos e irmãs e quer exercê-lo na simplicidade
do lava-pés e numa proximidade fraterna ao Povo de Deus.
As Comunidades Cristãs ou Eclesiais de Base tão recomendadas no
Documento Santarém 1972 são expressão de uma Igreja viva e comprometida. Como
os bispos já afirmaram em Manaus (2007), elas constituem um dom especial que
Deus concedeu à Igreja na Amazônia. São obra do Espírito Santo. O que o
Documento de Aparecida afirma, aplica-se de modo especial à Amazônia. As CEBs, diz o documento,
“têm sido escolas que têm ajudado a formar cristãos comprometidos com sua fé,
discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até
derramar o sangue, de muitos de seus membros” (DAp 178). As CEB’s são também
uma resposta válida e empolgante para o mundo urbano como resposta ao
individualismo e a superficialidade do consumismo. Nas CEBs se vive a dimensão
samaritana da compaixão ativa e interajuda, de um coração e mãos abertas para
quem sofre ou passa necessidade, mas também a dimensão profética de anunciar
continuamente a utopia do Reino e, ao mesmo tempo, denunciar todos os
mecanismos e estruturas que impedem a chegada do Reino. É exatamente esta
dimensão profética que gerou as e os mártires da Amazônia. As CEBs
constituem-se em família das famílias onde todos se conhecem e querem bem, mas
são também centros de oração e meditação da Palavra de Deus para nutrir a
mística profunda da vivência na proximidade de Deus. Ele mesmo se revelou como
um Deus-conosco e assegurou aos profetas, apóstolos, discípulas e discípulos:
“Eu estarei contigo“ (cf. Ex 3,14; Js 1,9; Jr 1,19; At 18,9-10). Afinal “se
Deus está conosco, quem será contra nós“ (Rom 8,31).
Santarém 1972 assume a
questão indígena como causa de toda a Igreja na Amazônia. Lembra que no mesmo
ano por iniciativa dos bispos, mormente dos da Amazônia, foi fundado o Conselho
Indigenista Missionário – Cimi.
Os
bispos talvez não imaginavam quarenta anos atrás o imenso apoio que sua decisão
significava aos direitos e à sobrevivência de dezenas de povos indígenas na
região amazônica que, sem o empenho intransigente da Igreja, teriam
desaparecido. A presença solidária e o apoio incondicional à luta por seus
direitos foi fundamental para que hoje a maioria dos povos indígenas da região
tenha suas terras demarcadas. Foi também de enorme importância gerar uma
consciência de respeito e valorização dos povos, suas culturas e seus projetos de
“Bem Viver“. Dezenas de povos saíram do silêncio em que foram forçados a se
ocultar para sobreviver. Ressurgiram das cinzas e estão lutando pelos seus
direitos e suas terras. Alem disso a atuação corajosa dos missionários, selando
seu compromisso através do sangue derramado pela vida desses povos, propiciou o
surgimento de articulações e organizações dos povos indígenas, essenciais para
a conquista de seus direitos e sua autonomia.
Os
riscos de extermínio de vários grupos indígenas em estado de isolamento
voluntário, exige um renovado compromisso com a sobrevivência de milhares de
vidas e povos ameaçados de extinção.
Na perseverança
salvareis vossas vidas (Lc 21,19)
Deparamo-nos
hoje com uma verdadeira enxurrada de grandes projetos que os Governos querem
implantar, seguindo a estratégia do “fato consumado“. Não há discussão, nem
consulta popular que merecesse este nome. Decide-se e executa-se. Oponentes são
criminalizados ou taxados de inimigos do progresso. Também os ribeirinhos,
seringueiros, quilombolas, e outros povos tradicionais sofrem pela falta de
reconhecimento de suas terras.
A
ética na política prometida à nação e esperada pelo povo brasileiro cedeu lugar
a uma sequencia ininterrupta de escândalos de corrupção em todos os níveis
governamentais.
Somado a estes desafios nos
deparamos com a emergência do fenômeno urbano, com o inchaço nas periferias das
grandes cidade, exploração sexual, tráfico de pessoas e de drogas, violência.
Em vez de investimentos em políticas públicas de saneamento básico, saúde,
educação e segurança, o Estado prioriza políticas compensatórias, apoia e
incentiva o grande capital, investe na construção de estádios monumentais e
outras obras faraônicas.
“Podem
roubar-nos tudo, menos a esperança” (D. Pedro Casaldáliga). No caminho de
“Santarém”, novamente nos lançamos nas estradas e rios, nas aldeias e
quilombos, nos interiores e periferias das cidades, nos grandes centros urbanos
desta imensa Amazônia, abraçando a Missão que nos foi confiada, comprometidos
com toda a criação e na busca de sermos autênticas comunidades de fé
alimentadas pela Palavra e pela Eucaristia. Nesta hora da história o nosso
coração às vezes, se angustia por causa de tantas dificuldades que nos
desafiam, aparentemente insuperáveis; no entanto, continuamos a ser chamados e
enviados como missionários e profetas para alimentar a esperança, como âncora
firme e segura (cf Hb 6,19), de um mundo novo, inaugurado por Jesus Cristo
Crucificado e Ressuscitado..