Uma oportunidade imperdível para os estudantes e pesquisadores que trabalham com a temática de povos indígenas e conhecimentos tradicionais foi a palestra da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, ocorrida em Manaus, 08 de abril de 2010 no ICHL/UFAM.
"Manuela Carneiro da Cunha é considerada uma das mais importantes antropólogas da atualidade. Suas pesquisas marcaram profundamente a antropologia feita no Brasil e tiveram grande impacto político, ajudando, por exemplo, a consolidar, na Constituição de 1988, os artigos que tratam dos direitos dos índios à terra. Dando continuidade à produção de mais de três décadas, Manuela lançou em 2009 o livro Cultura com aspas, que reúne artigos escritos em diferentes épocas e um texto inédito sobre a cultura, como entendida antropologicamente, e a “cultura”, como termo que tem sido apropriado por comunidades indígenas e tradicionais. Professora aposentada da Universidade de Chicago (Estados Unidos) e integrante do Conselho de Administração do Musa, Manuela Carneiro foi cofundadora e primeira presidente da Comissão Pró-Índio de São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Atualmente, suas pesquisas se voltam para o conhecimento tradicional e o direito intelectual das sociedades indígenas sobre esse conhecimento e para os mecanismos sociais responsáveis pela agrobiodiversidade no médio Rio Negro." (Fonte: MUSA)
Na contra-capa do livro "Cultura com aspas", Marshall Sahlins apresenta Manuela como "uma matemática que se tornou antrópologa, nascida em Portugal, educada na França e no Brasil, onde, depois de pesquisa de campo e de arquivo na Amazônia e na África Ocidental, assumiu altas posições acadêmicas, inclusive a Presidência da Associação Brasileira de Antropologia, para então se tornar professora durante quinze anos em uma universidade norte-americana altamente respeitada, Manuela Carneiro da Cunha fez do que chama de "interface" cultural - a mediação da alteridade - a obra de toda uma vida. Eu diria que essa mesma inclusão dialética é o fio condutor de sua extraordinária antropologia."
Na palestra, a Profa Manuela expôs sobre o uso reflexivo da noção de cultura (cultura com aspas) e a convivência mútua da noção invisível da cultura (sem aspas) e quais os efeitos dessa convivência. Também expôs sobre a Convenção da Diversidade Biológica (art. 8- J ), a "força moral" da ONU (CDB) , diferente da "força real" que a OMC tem, através de sanções. Falou sobre a discussão atual envolvendo as patentes e a campanha internacional dos países megadiversos nesta direção. Também acrescentou a observação do problema interno no Brasil, se a legislação está realmente sendo aplicada, principalmente no que tange ao INPI.
Sobre os conhecimentos tradicionais nas aldeias indígenas, a professora expôs sobre o caso emblemático e a histórica do "kampô", iniciada a discussão com a carta que os Katukina (Acre) enviaram à então ministra Marina Silva, reivindicando seus direitos. Como vários grupos étnicos (do Brasil e Peru, países com legislações diferentes sobre o assunto) compartilhavam os conhecimentos sobre o uso do kampô (secreção de rã), como se fazer a possível repartição de benefícios deste conhecimento tradicional associado? Registra-se que desde os anos 1990, muitas patentes ocorreram envolvendo a substância referida.
A professora mostra a dinâmica que está sendo induzida pela reflexividade da cultura e entre uma das consequências é a coletivização do que seria um direito privado de poucos. E com a ascenção dos conhecimentos tradicionais, os conhecimentos que estavam difusos, passam a ser reservados.
Para a professora, "Cultura" é no sentido de metalinguagem, falar de si mesmo, sendo difícil distinguir a cultura com aspas e cultura sem aspas, pois há co-existência dos universos de discursos (o que não quer dizer que um é falso, ambos são verdadeiros), o que pode levar à contradições, como o paradoxo que não tem solução, pois é inerente à linguagem completa, que é capaz de falar de si mesma, ou seja, que é reflexiva.
Uma das grandes contribuições da antrópologa para nossos estudos (me refiro aqui para os pesquisadores e operadores do direito, incluindo a produção legislativa), é mostrar que a idéia de que há coletivismo, de que tudo é coletivo nas sociedades indígenas está completamente enganada, "o sistema de direitos nas sociedades indígenas não é coletivo".
Daí, nos leva a refletir sobre a questão dos direitos individuais e coletivos, principalmente no que concerne à propriedade intelectual. Nos mostra a dicotomia:
propriedade intelectual coletiva ("cultura") X domínio público (cultura).
E que trata-se de um "jogo justo", que as sociedades indígenas têm toda razão para jogar este jogo, defendendo a propriedade intelectual coletiva.
Expõe também sobre as novas formas de representação (associação) para se ter "existência jurídica" e a questão da legitimidade da representação (e quando há várias associações, quem representa?), que, sobretudo, devemos considerar que há uma dinâmica das circunstâncias, e se tem legitimidade ou não, isso vai ser decidido internamente. Sublinha-se que a cultura é dinâmica e está em constante mudança.
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Gostaria de citar aqui também, neste relato, algo que me chamou muito a atenção na obra da Manuela , pois gostei muito da definição desenvolvida e mostrada pela autora (de uma definição "em extensão" para uma definição analítica) de
POVOS TRADICIONAIS:
" (...) são grupos que conquistaram ou estão lutando para conquistar (prática e simbolicamente) uma identidade pública conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados." (CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 300).
Fotos: a autora autografando nossos livros. Minha amiga Jocilene Gomes, antrópologa e professora da UEA toda feliz com o livro e palestra.
Fotos gentilmente tiradas e enviadas por Mariana Ferraz, assessora de comunicação do MUSA.
"Para Liana, advogada!
Com um abraço
de Manuela.
8.4.2010."